Faça parte do canal da Metropole no WhatsApp >>

Sábado, 27 de abril de 2024

Home

/

Artigos

/

Marielle e a favela venceram?

Marielle e a favela venceram?

Do mesmo jeito que “a favela venceu” é uma frase que não encontra eco na realidade, soa muito estranho ouvir lideranças da esquerda e amigos de Marielle começando a adotar a hashtag “Marielle venceu”

Marielle e a favela venceram?

Foto: Reprodução

Por: Malu Fontes no dia 28 de março de 2024 às 00:00

Quando alguém diz, escreve, estampa numa campanha publicitária que “a favela venceu”, mente. Não venceram áreas que matam jovens cravando-os de balas só porque eles se apaixonam e namoram meninas que moram em CEPs tão abandonados quanto os seus pelo poder público mas são comandados por outra facção, como aconteceu esta semana em Salvador. Pode-se até dizer que a favela desceu, para a festa vip, para o festival hype e caro de música, para o camarote, para o palco, mas o verbo vencer não encontra nas ruas sem asfalto e sem esgoto nenhuma equivalência com a vitória berrada pelo marketing e pelas redes sociais.

Do mesmo jeito que “a favela venceu” é uma frase que não encontra eco na realidade, soa muito estranho ouvir lideranças da esquerda e amigos de Marielle começando a adotar a hashtag “Marielle venceu”. Em tese, a frase teria como pressuposto o argumento de que Marielle pagou com a vida por algo que agora está garantido aos cariocas, fluminenses e, por que não, aos brasileiros: a chave para desmontar a engrenagem entre o Estado, a política, a polícia, a milícia e o tráfico. Sua morte seria, segundo essa linha de raciocínio, a libertação da população do jugo da articulação perversa entre crime e Estado. Marielle morreu, mas, ao morrer, teria decifrado o enigma e interrompido os esquemas que a mataram.

Quando os amigos de Marielle dizem, um dia após a revelação e prisão dos mandantes, encomendadores e arquitetos do seu assassinato, que, pelo crime ter ganhado a dimensão que ganhou e por ter sido desvendado, ela venceu, estão, ou apostando no autoengano precipitado, ou romantizando a violência, ou mimetizando a hipocrisia na qual se sustenta o mantra publicitário vazio do “a favela venceu”. Primeiro, pelo óbvio: é precoce acreditar ou afirmar que a estrutura da violência praticada pela corrupção do Estado garantida pela polícia vai ser estancada, no Rio de Janeiro, porque se descobriu que um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, um deputado federal e um chefe de polícia fluminense, equivalente a secretário de Segurança Pública, planejaram e executaram uma vereadora e seu motorista com tiros de fuzil, ficaram seis anos impunes mas agora foram descobertos e estão presos.

Cocaína nas bordas do inferno

O Rio de Janeiro prendeu ou afastou nos últimos anos seis governadores, prendeu milhares de traficantes, centenas de milicianos. Viu milhares de mortes de culpados e inocentes nas favelas e estas continuam derrotadas. Depois de milhares de prisões, operações letais com o mesmo roteiro e prisões abarrotadas, um grama de cocaína a menos não deixou de ser vendido e a realidade social de gente em nome de quem supostamente Marielle morreu não mudou nada, a não ser para pior, dependendo de que favela estejamos falando e independentemente de o substantivo usado às vezes ser substituído por comunidade, área conflagrada, faccionada ou território dominado por milícias.

A vida das pessoas empurradas, ao longo da história, para as bordas de infernos nas metrópoles continua péssima, e não faz sentido esse slogan assertivo porque os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão e o delegado Rivaldo Barbosa foram desmascarados. Disso à interrupção do estado de coisas no Rio de Janeiro há uma distância abissal. Ministros do Supremo Tribunal Federal dão declarações dizendo que as polícias do Rio precisam ser refundadas.

Sim, mas isso se fará como, a que tempo e a que custo? Demite todo mundo das polícias, a civil e a militar, todos servidores concursados, com estabilidade? Colocam-se todos na reserva? E a conta? A saída desse túnel não tem caminho fácil. A favela não venceu. Marielle morreu, e isso, aconteça o que acontecer, não se converterá em vitória para ela.